Aparício e as Pedras — Pt. Final

Leo Raoni
4 min readNov 30, 2023

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Silêncio no ginásio abafado.

Isso não vai estar em nenhuma página de jornal, em nenhum noticiário esportivo. Não será divulgado por nenhum comitê olímpico ou sequer mencionado pelos aficionados em xadrez. Podemos dizer que isso nunca aconteceu.

Até porque, parece que isso nunca aconteceu.

Bolinha late. De longe, Aparício olha para a cachorra, tentando manter uma comunicação não verbal para que ela fique quieta. O momento pede concentração dos enxadristas.

Um calor insuportável dentro daquele ginásio vazio. Como era possível? De um lado, um homem paramentado de terno e gravata; do outro, chinelo e regata e um shortinho que deixava qualquer pernilongo louco para agir.

Aparício está com as pedras brancas. Ele move o peão do rei dois espaços para frente. Kasparov responde movendo o peão do bispo dois espaços para frente. Aparício avança o peão do bispo em dois espaços. Kasparov contra-ataca, avançando seu peão do centro para d5.

- Ele já tá ganhando? — pergunta Anésio.
- Ele já entrou ganhando — responde Dona Rita.
- Ah lá!

Aparício acaba de capturar o peão das pretas em d5 com seu peão de e4. As pretas respondem capturando de volta com a rainha.

- Ele fez alguma coisa com o russo — crava Simão.
- Mas o russo fez um negócio com ele também — responde Anésio — eu não entendo é nada. Muito, mas muuuuito mais fácil jogar porrinha.
- É por isso que você tá aqui e o Aparício lá! — defende Dona Rita.

Anésio cala em sua ebriedade. Calor, muito calor. É possível ver Kasparov suando pelos vincos da camisa.

A partida segue com Aparício movimentando o seu peão do rei para d4. Kasparov desenvolve o cavalo para f6. É um duelo de alto nível. Anésio arrota. Aparício desenvolve com cavalo para f3 e Kasparov coloca o bispo em g4, atacando o cavalo branco do aposentado. Bolinha late.

Jorge grava a partida com a sua câmera. Mônica olha para os enxadristas.

- Vamos embora.
- Sério?
- É. Eu errei. Quem vai querer ver isso? Vou levar maior sabão por causa disso, mas vou fazer o quê.

Dona Rita vê Mônica e Jorge guardando os aparelhos.

- Só quer saber de manchete e tutu na carteira.

A dupla vai embora. Hoje não tem furo.

Parece tudo muito complicado: letras e números, movimentos, aberturas e jogadas. É possível ver a competição de igual para igual. As horas na pracinha ao lado de Bolinha tentando entender esse novo jogo estavam valendo a pena, assim como as noites de descontração e cuidado com Dona Rita. Mesmo sendo um hipotético azarão, Aparício não estava se curvando para ganhador de lugar nenhum.

Kasparov tinha história. Tinha títulos. Tinha um nome a preservar. Mas também tinha calor. Assim como déspotas de outrora subestimaram o inverno de terras russas e soviéticas, Kasparov provavelmente não deu bola para o intenso calor que fazia nos trópicos nessa época do ano. O Brasil, camarada, são outros quinhentos.

No entanto, o jogo segue. Mas o azeri desidrata na frente de Aparício. Pede um copo d’água para a equipe técnica, se desvencilha do pesado terno, mas nada, nada parece amenizar a sensação. E isso atrapalha seu julgamento.

A regata de Aparício, de repente, hipnotiza Kasparov. Aquela imagem praieira, aquela silhueta de um homem em uma prancha. “Surf”. Kasparov precisa ir à praia, tomar um banho de mangueira no quintal, que seja. Suando às bicas, Kasparov olha para o seu oponente.

Aparício avança o peão para g3, criando uma fuga para o rei. Calor. Kasparov move o cavalo para d3, atacando a torre branca em c1. Surf. O aposentado move a torre para c7, atacando o rei de Kasparov e ameaçando mate. Praia. Em resposta, ele move a torre para e8.

- (azerbaijani) Você é muito bom, sabia? Parabéns.
- Quê?
- (azerbaijani) Você sabe que isso é uma exibição né? Não é muita coisa pra mim.
- Que que o russo tá falando aqui, gente?

Nem Kasparov percebeu o que havia feito: quando deu por si já tinha deitado o seu rei.

- (azerbaijani) Bom jogo. Boa sorte.
- Eita porra!

Kasparov estende a mão para Aparício, que está atônito. Ninguém entende. Aparício retribui o aperto de mão. O comitê soviético, como baratas tontas, só faz o trabalho de escoltar Garry Kasparov para fora do ginásio, tal como um Elvis envergonhado deixando o palco.

O juiz da partida olha para Aparício.

- Você venceu.
- Eu venci? — Aparício olha diretamente para Dona Rita — Aí, Rita, o moço falou que eu venci!

Aquele ginásio da periferia foi palco da sua maior vitória. Os únicos três indivíduos da plateia (quatro, se contar com uma Bolinha agitada e uivando), gritavam em altos pulmões uma vitória que de alguma forma também era deles.

Dona Rita desceu para beijar Aparício. Os seus olhos brilhavam. Os amigos se aproximaram também para dar um abraço fraterno. Bolinha se aproximou balançando o rabo. Nunca uma cachorra prenha foi tão bonita como naquele momento esquecido da história das cachorras prenhas.

E sobre história, é isso. Garry Kasparov foi ser Garry Kasparov em outros lugares, derrotando oponentes e sendo derrotado por computadores de alta performance, lançando livros e tendências. Já Aparício foi ser Seu Aparício, dando um churrasco tímido, em comemoração à vitória, comprando remédio de pressão na farmácia popular, ajudando na ninhada de Bolinha, comprando pão de manhã cedo para Dona Rita, que amava um pão quentinho e que se queixava do pé frio de seu marido quando, às vezes, e somente às vezes, fazia frio naquela cidade.

Aquilo passou como tudo passa. Mas anos depois ainda era possível ver Seu Aparício na pracinha, concentrado com suas pedras plásticas no tabuleiro de cimento.

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