Leo Raoni
3 min readJan 26, 2024

ESPIRAL

- Assim, tipo, se quisesse. Se eu tivesse uma vontade danada de sei lá, fazer uma nave e pousar na Lua, eu consigo? Eu tô partindo do princípio que todo mundo tem o direito de ir e vir, então eu muito bem poderia pegar, fazer uma vaquinha, juntar com um empréstimo na Crefisa e financiar um projeto pequeno pra fazer um foguete pra ir na Lua. Mecânico eu tenho pra fazer, o cara manja muito de solda. Ele refez o motor inteirinho do chevette do Pedro Boca de Sacola. Ele não gosta muito de ser chamado assim, mas eu vou fazer o que. Não sou eu que dou apelido pras pessoas. Se bem que boca de sacola é um ótimo apelido pro Pedro. O cara não consegue guardar nada, nada, nadinha. Sabe que toda aquela treta lá da feijoada comunitária que azedou foi ele que espalhou pra todo mundo. Gerson ficou responsável por comprar a carne, mas você sabe como ele é pão duro. Daí foi lá nos “próximos ao vencimento”, comprou tudo e embolsou a diferença. Tava selado à vácuo, mas de qualquer maneira tava na seção de próximo ao vencimento. Quando o mercado coloca qualquer coisa lá eles tão tirando o corpo fora de qualquer merda que aconteça com você. “Vai pagar barato, mas não pode dar uma revetrés”. A feijoada tava até bonita, brilhosa, mas mexendo você conseguia ver ela meio fermentada, um troço esquisito no meio do feijão. Eu não peguei. Mas acho que foi vingança do Boca de Sacola. Depois disso o Gerson, coitado, ficou se sentindo muito mal. Das duas maneiras. Uma delas porque ele comeu demais e passou três dias no trono. A outra porque ele fez a rua inteira ficar de cama em casa. Não muito mais coisa não, só essa questão intestinal. A Dona Marta que ficou um pouco mais ruinzinha também porque ela já tinha uma doença meio braba, um negócio meio que de nó na tripa, não sei dizer o que é não. Lembra que o filho dela, o Zito, uma vez teve que sair correndo da Base Aérea pra acudir ela da primeira vez, faz uns 4, 5 anos isso aí. Era só um soldadinho de nada o menino, mas tinha tanta moral lá dentro que vieram deixar ele de Jeep. Ficou do lado da mãe, aqueles dias todos, nem tava ligando se iam afastar ele ou não. Os dois sozinhos no mundo. Bicho fez a prova e passou pra escola de sargento, nem precisou de muito tempo não. Por isso que ele se mudou lá pra Guaratinguetá, faz tempo que eu não vejo ele. A última vez foi na festa da Brenda, a menina da rua debaixo, cabelo ruivinho, gostava de Natiruts e deixava o CD tocar até altas horas e só desligava quando o pai chegava no quarto dando berro. Aquela festa dela, acho que era de 17 anos, ou 16, que colou uma galera meio treze que não se dava com a gente e pra não dar xabu a gente puxou o carro mais cedo. Pois é. Depois é que a gente ficou sabendo que o pai da menina tava envolvido com coisa de roubo de carga, negócio muito puxado, e só não foi preso porque conseguiu dar um arrego pros gambé. Tem gente que tem uma sorte da porra né? Se meter com delegado e ainda sair ileso. Dizem que o Alvarez na época lá do…da… ditadura chegou a levar uns fulano lá no descampado da velha Ciça, isso aí, ó, milianos. Tadinha, Deus a tenha, já deve ter visto de um tudo nesse bairro. Já foi na casa dela? Cara, quando ela ainda andava precisava ver como era gente boa: tratava a gente muito bem, deixava correr lá no quintal dela, fazia uns bolinho de chuva. Eu sentava no chão daquela cozinha de cimento queimado, sabe? Que agora esse povinho mais moderno gosta de falar que adora. O chão vermelho indo pro vindo, já meio rachado, mas enceraaaado. Dia sim, dia não, passava uma enceradeira walita no chão que fazia um barulho da porra. E daí quando acabava você ouvia ela falar “Valha-me Deus que é trabalho que não acaba nunca”. Mas mesmo assim, ia lá ia fazia bolinho de chuva praquele bocado de moleque tudo suado, sujo. Mas, o que eu tava dizendo mesmo? Sim, lembrei! Será que eu consigo fazer uma nave e pousar na Lua?

- Acho que não.

- Imaginei.